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Re-encontro


A feira da 25 de Março fervia naquele verão sem azul de São Paulo. Joana vagava pelas ruas, lojinhas e barracas. Mais curiosa do que interessada, ela perguntava preços, procedências, conferia detalhes e ria sozinha de alguns produtos engraçados de tão improváveis, como uma vela em forma de maça que ao derreter vira um óleo corporal "beijável"...

— Mas será que não vai queimar as partes sensíveis envolvidas? — Ela pensou entre sorrisinhos sem-vergonha...

Em outro instante, quando se virou para perguntar o valor de uns pratos estampados com o rosto da Frida Kahlo, ela levou um susto!

Perto dali, entre um pequeno grupo de quatro ou cinco pessoas, estava Miguel. Ele tinha acabado de puxar a máscara de proteção da pandemia do rosto para  beber uma Coca-Cola direto na garrafa, quase em um gole só, provavelmente para dar um soco refrescante naquele calor abafado. Mas, quem ficou gelada foi Joana...

Imediatamente, ela procurou camuflagem na confusão das barracas e ficou alguns minutos observando cada centímetro dele. Tudo nele era inédito, e ao mesmo tempo não. Paralelo àquela visão surpreendente, um suspiro foi se arrastando dentro dela, denso, desentupindo um curso lacrado que logo deixou escapar desejos represados. No entanto, munida de memórias e de razões, ela reagiu e decidiu sair, correr, escapar...

Meio tonta, Joana caminhou sem endereço para o outro lado da feira. Mesmo chacoalhada por aquele encontro tão inesperado que chegava a ser chocante, ela acabou se distraindo de novo naquele enorme corredor de gente e de produtos que atravessava e se espalhava por dezenas de ruas. 

— Pronto, passou, passou...— Ela disse para si mesma repetidas vezes, inclusive em voz alta.

Mas, como não é incomum, o destino queria se divertir mais. Cerca de uma hora depois, já acalmada pela distância daquela cena que ainda rondava seus pensamentos (e seu corpo), Joana perguntou a um barraqueiro o valor de umas esculturas de palavras em MDF recortado, porque queria levar presentes para alguns amigos.

— São R$ 17,00 cada, mas se levar duas eu faço por R$ 30,00 — promoveu o dono das bugigangas

— E se eu levar "treixxx?" —, perguntou Joana, arrastando seu sotaque praiano.

O barraqueiro se animou e melhorou a oferta:

— Leva quatro, madame, que faço tudo por R$ 50,00!

Ela fez uma conta rápida, gostou da barganha. Mas, quando ia confirmar a compra, parou ao ouvir chamarem seu nome.

— Joana?

Era Miguel.

Atraído por aquele sotaque carioca que tanto adorava em Joana, Miguel instintivamente se virou em direção àquela voz, no mesmo momento em que ela esticava o braço para entregar as palavras escolhidas ao barraqueiro, revelando a sua tatuagem no pulso. Em frações de segundos, ele ligou uma coisa a outra e a reconheceu mesmo ela estando de costas, de máscara, e eclipsada por outros compradores próximos.

Ao ouviu a voz dele e olhar para trás, Joana ficou com as palavras nas mãos, paralisada. O barraqueiro foi quem quebrou o gelo:

— A madame vai levar essas aí?

Ela não conseguiu responder. Sem afastar os olhos de Miguel, colocou as palavras de volta no tablado da barraca. Quando ele se aproximou dela, a confusão da rua acabou fazendo os dois se esbarrarem fisicamente. Deu choque. Sem pensar, ele a puxou pela cintura e a conduziu até achar o canto mais anônimo que encontrou pela frente. Quando pararam, os dois riram sem graça e, protegidos pela desimportância de uma das ruelas do entorno, tiraram as máscaras.

— Mas...o que você está fazendo aqui, Joana? Não acredito que te encontrei no meio de uma feira em São Paulo.

Ela não comentou que já o tinha visto, porque mal se recuperou disso e lá estava ele na frente dela.

— Pois é, nem eu acredito também. É uma daquelas coincidências que só acontecem com a gente mesmo. — Ela disse involuntariamente, se arrependendo logo depois de ter evocado o passado.

Ele ficou em silêncio. Agora era a vez de ele observar cada centímetro dela...

— Para, Miguel. — Ela implorou, sentindo sua temperatura explodir.

Ele falou do seu trabalho, perguntou sobre o dela e continuaram a falar mais um pouco sobre amenidades. Não demorou para chegarem a uma pausa desconcertante, afinal os assuntos não eram importantes. Nada era mais importante do que estarem um de frente para o outro depois de tudo, depois de tanto tempo e...por acaso. 

— Você está bem? — Ela jogou a pergunta genérica para tentar sair da situação...foi pior.

— Em relação a você? Vou te responder com um beijo, posso? — Ele perguntou com aquele meio sorriso no canto da boca que sempre a tirou do eixo...

O corpo de Joana tomou a dianteira e se ofereceu, desprezando suas defesas. Mal seus lábios se tocaram, os dois começaram a se agarrar alheios a tudo, em uma bolha, no meio daquela Babilônia. Os beijos foram para os pescoços e...desceram, enquanto as mãos desafiavam as roupas. Ele a imprensou em uma porta abandonada ali, especialmente para eles; e ela finalmente o sentiu, como sempre quis, mesmo no meio daquele cenário ordinário. Mesmo vestida, Joana ficou tão tomada pela intensidade entre eles que sucumbiu e estremeceu colada ao corpo dele, pouco antes do telefone de Miguel começar a gritar, arrancando os dois daquele arrebatamento. Quando se afastaram um pouco, ela percebeu que alguma inquietude atravessou os olhos dele, mas ele não arregou...não de todo, não desta vez. Depois de checar a tela do celular, ele disparou firme:

— Tenho que ir embora. Estou com amigos. Você fica aqui até quando?

— Vou embora amanhã de manhã — Ela respondeu tomando fôlego e um pouco atordoada com a retirada precoce anunciada por ele.

— Joana, tenho que ir, mas vamos nos ver hoje de novo? Vou te ligar e a gente se encontra  mais tarde.

— Pode ser...ou não. Não era nem para estarmos nos vendo agora... — Ela falou, voltando para sua atitude defensiva.

— Joana, eu preciso te ver de novo, só que mais tarde. Isso é grande demais para ser uma simples coincidência. Você não acha?

Ela não disse nada, ficou se arrumando depois daquele amasso que, na verdade, amarrotou mais as suas certezas do que as suas roupas.

Miguel pegou o rosto dela nas mãos e a olhou bem nos olhos, que abaixaram sorrateiros, fazendo ele também abaixar o rosto para que ela fosse obrigada a encará-lo e a ouvi-lo.

— Vamos nos ver mais tarde. Acredita em mim.

Ela assentiu com a cabeça e com um sorriso involuntário. Joana também o queria mais. Já estava feito.

— Vamos voltar para a feira? — Ele perguntou com os olhos no celular.

— Vai você. Vou dar uma respirada antes e depois vou voltar para a barraca das palavrinhas que acabei não comprando.

Ele olhou para ela sério, desconfiado daquela liberação fácil.

— Miguel, vou esperar sua mensagem para combinarmos nosso reencontro. — Ela disse em um tom mais cúmplice.

Já eram quase 22 horas quando ele mandou uma mensagem perguntando onde Joana estava. Ela deu o endereço e descobriram que estavam separados por apenas quatro quadras naquela cidade gigante que não era nem a dele e nem a dela. Combinaram de se encontrar no meio do caminho, como deveria ter sido sempre. Joana chegou com um vestido preto que ele amava, e que ela havia enfiado na mala de última hora. Miguel também chegou todo de preto, a cor preferida dela para ele, porque contrastava com a sua pele clara e combinava com seus cabelos, olhos e barba.

Mais uma vez se pegaram na rua, pelos becos, se apertando mutuamente contra paredes e portas fechadas; desinteressados em voltar a perder tempo tentando ir a lugar nenhum; apressados não em terminarem, mas em colocar em prática muitos ensaios imaginados, descarados e absolutamente particulares.

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